Em Porto Alegre, ao contrário de no Brasil do jogo do bicho, não vale o que está escrito. E a maior atração da cidade é – como dizem a respeito da macheza da gente daquele estranho país ao Sul de Santa Catarina – uma ficção. Ou, no mínimo, uma gigantesca dúvida.
Não vale o que está escrito. As placas e os mapas dizem Rua dos Andradas, mas na verdade ali é a Rua da Praia – e não há praia alguma por perto. Está escrito Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, mas o povo fala Parque Harmonia. Oficialmente, é Parque Moinhos de Vento, mas o que vale é o nome de Parcão. O Parque Farroupilha só é Farroupilha nas placas e mapas, porque de fato ali fica o Parque Redenção. Na Rua da República, há o Armazém da Esquina – que fica não numa esquina, e sim bem no meio de uma quadra.
Ficção, ou gigantesca dúvida. A grande atração da cidade, uma beleza danada, o Rio Guaíba, famosíssimo, cantado em prosa e verso, até porque aquele povo escreve muito, e escreve bem, não chega a ser um rio. Parece mais um lago. Passa, atualmente, por uma séria crise de identidade. A moça cuja voz gravada sai dos alto-falantes do Cisne Branco, o belo barco que faz passeio naquelas águas às vezes barrentas, às vezes escuras, às vezes azuis, abre a discussão: informa que o Guaíba sempre foi chamado de rio, mas os especialistas dizem que é um lago. O guia do ônibus de dois andares sem teto em cima – como os de Paris – também lança o questionamento. E o mapa oficial distribuído pela Secretaria Municipal de Turismo crava: Lago Guaíba.
Só que não é bem um lago, já que as águas andam do Delta do Jacuí, ao Norte, em direção à Lagoa dos Patos, ao Sul.
Vai entender.
E a mais recente atração da cidade, o prédio da Fundação Iberê Camargo, debruçado numa elevação sobre a beleza do Guaíba, com uma vista espetacular para os prédios da cidade ao longe, como se fosse um morro em Sausalito de onde se vê a silhueta deslumbrante de San Francisco do outro lado da baía, é um horroroso, grotesco caixote de concreto pintado de branco, com apenas umas três minúsculas janelinhas, mais parecidas com vidros de aquário, dando para aquela imensidão toda.
Mas que não se pense que as constatações acima são uma crítica à cidade. Porto Alegre é uma cidade belíssima, calorosa, agradável, apaixonante.
As belas se mostram
Então, para começar: eta cidade para ter mulher bonita, tchê. Talvez seja – deve ser – por causa da mistura, da miscinegação. Miscigenação embeleza, e lá teve de tudo, índio, português, italiano, alemão, preto. Muita mulher longilínea, lindilínea, altas, bonitas, gostosas. Mary, que não tem absolutamente nada de homo, ficou impressionada, talvez tanto quanto eu.
Reparei muitas mulheres de vestidão comprido, até o pé. Tem mesmo – mas também tem um bando de mulher de jeans apertados, bunda bonita, e um bando de mulher sem nenhuma vergonha de mostrar belas coxas. Às vezes dá a impressão de que todas tinham passado o verão inteiro na praia, coxas bronzeadinhas.
E elas sabem que são bonitas, e que estão sendo olhadas – e mulher que sabe que está sendo olhada fica ainda mais bonita
Não se constrangem. Se mostram.
Tive o exemplo perfeito no Shopping da Rua da Praia, que tem uma galeria que liga a Rua da Praia à Riachuelo, mais acima, logo no ponto em que ficava o nosso hotel. Tomamos café da manhã numas mesinhas lá, duas vezes em que perdemos o horário do café no hotel; na segunda vez, numa hora em que a Mary foi comprar não sei o quê, fiquei olhando feito bobo pra garotinha da loja de chocolates em frente, que chamei de Mezzagiorninho, porque é uma espécie assim de Giovanna Mezzogiorno – jeitinho de descendente de italianos, pele claríssima, olhos verdes claros, calça jeans de cintura baixa, blusinha apertadinha acima da cintura, deixando ver a carne jovem da barriga, os ossos da bacia aparecendo dos dois lados. Diante do olhar insistente do velho careca, poderia ter perfeitamente andado pro outro lado da loja dela; que nada – enfrentou. Tirou o celular e veio conversar fiado com alguém bem perto de onde eu estava. Por nada, não – só pra dizer que sabia que estava sendo olhada, a Mezzagiorninho.
Tem vida no Centro - e é uma cidade da classe média
O Centro de Porto Alegre é um formigueiro como todo centro de grande cidade, durante os dias de semana – mas, ao contrário do que acontece em São Paulo, no Rio, em Belo Horizonte, ele não fica deserto nem à noite, nem no fim de semana. Por uma sorte grande da cidade, a população não abandonou o Centro; há ali muitos edifícios residenciais. Reparamos isso desde o primeiro dia. Na própria Rua Riachuelo, na Praça da Matriz – onde ficam a Catedral Metropolitana, o Palácio Piratini, do governo, a Assembléia Legislativa, o Tribunal de Justiça e o Theatro São Pedro, todos os cinco poderes, contando com a religião e a cultura – e ao redor dela existem belos prédios de apartamentos, de classe média, e mesmo média alta. Por isso, o Centro não degradou. Sorte grande.
média nas ruas – uma cidade da classe média. Mary e eu ficamos muito impressionados com isso. Há lugares ricos, de gente muito rica, como a região de Moinhos de Vento, mansões impressionantes em algumas das ilhas do Delta do Rio Jacuí, na Praia de Ipanema, ao Sul, e há lugares mais classe média baixa, como alguns bairros ao Sul e também ao Norte, perto da ponte móvel que vai rumo a Pelotas, Rio Grande e Chuí; e há também classe média baixa em alguns lugares do Centro, perto do porto. Mas praticamente não há miséria – a pobreza que se vê é digna. E a sensação que se tem é de que, sobretudo, Porto Alegre é uma cidade que tem uma grande, uma dominante classe média.
Fiquei pensando, à luz (ou à sombra) dos meus parcos conhecimentos, quais seriam as razões disso. Ao contrário de tantas outras grandes cidades brasileiras – como São Paulo, Belo Horizonte, Fortaleza, Salvador –, Porto Alegre não inchou demais, não teve imensa explosão demográfica, nas últimas décadas. Em parte, provavelmente, porque a população do Sul é historicamente mais letrada, mais estudada, mais desenvolvida. Em parte porque o Rio Grande do Sul tem diversas boas cidades médias, com escolas, hospitais, os equipamentos urbanos básicos que impedem o êxodo para os centros maiores. Houve êxodo de gaúchos, sim, e forte, pelo que eu saiba, mas não tanto para as grandes cidades, e sim para fronteiras agrícolas – o Sudoeste do Paraná, Rondônia, Mato Grosso, a região do cerrado em Minas e Bahia, a Oeste do São Francisco.
Um conjunto de diversos fatores, como sempre; deve haver outros, mas esses aí, sobre os quais pensei, devem ter influência no fato de Porto Alegre não ter inchado demais.
Não achei números que pudessem comprovar minhas teorias e lembranças, mas sei, ou ao menos acho que na década de 60 Porto Alegre era uma das cinco maiores cidades do Brasil – São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre, essa era a relação, talvez não necessariamente nesta ordem. Segundo números do IBGE para 2008, Porto Alegre estava em décimo lugar. Salvador, Brasília, Fortaleza, Curitiba e Manaus passaram à frente.
Não tenho os números anteriores, repito, mas acho que, uns 40 anos atrás, Porto Alegre tinha cerca de 1 milhão, assim como Belo Horizonte e Salvador; em 40 anos, BH pulou de 1 milhão para 2,4 milhões, Salvador, de 1 milhão para 2,9 milhões. Porto Alegre cresceu estupidamente menos, não inchou: tem hoje 1 milhão e 400 mil habitantes.
Bom, ótimo, excelente pra Porto Alegre.
A cidade – segundo disse o guia do ônibus turístico – tem quase o mesmo número de árvores e de habitantes: 1 milhão e 400 mil árvores é coisa pra burro. E isso é visível. A cidade tem verde de fazer inveja. A quantidade de parques é um absurdo, e os parques são imensos, Ibirapueras espalhados numa área várias vezes menor que a de São Paulo.
E ainda tem o Guaíba, aquela absurda quantidade de água em crise de identidade – rio ou lago? Como acontece no Porto da Barra em Salvador, e em Ipanema no Rio, o povo vai para a margem do Guaíba ver o pôr-do-sol, especialmente na região do Gasômetro. E a margem do Guaíba é um imenso parque que se une a outro e se une a outro e vai embora, desde o Gasômetro, no limite Sul do porto, até bem lá embaixo, na região onde fizeram o monstrengo em homenagem ao pintor gaúcho Iberê Camargo. O povo vai ver o Guaibão tingido de vermelho – só não aplaude, como às vezes fazem no Porto da Barra e em Ipanema, mas vai
Não é todo lugar que tem um Guaibão daqueles
Ainda não é hora de falar de comida nem de táxi, mas o motorista de táxi que nos levou na primeira noite à churrascaria Barranco, um garotão, observou o seguinte: as cidades são todas iguais, o que é diferente é a comida. Lembrei do hippie de Easy Rider que diz que veio de uma cidade e, perguntado de qual cidade, responde apenas: “Uma cidade; são todas iguais”. Mas respondi para o garoto gaúcho que não é bem assim: não é toda cidade, por exemplo, que se dá ao luxo de ter um Guaíba
São Paulo transformou o Tietê, o Pinheiros e o Tamanduateí em esgotos. Belo Horizonte, tadinha, sequer tem um rio – tem só um ribeirão, o Arrudas, e a única lagoa, lembra a Mary, é postiça, foi invenção do JK no tempo em que o Nieyemer ainda não tinha a mania de acabar com a grama e todo tipo de vegetação pra cimentar o chão nos lugares por onde passa. (Pobres lugares por onde ele passa.)
Duas empresas, com tipos bem diferentes de barcos, fazem passeios pelo Guaíba. O Cisne Branco é um barcão elegante, tem deck superior ao ar livre com cadeiras e mesinhas, um grande salão envidraçado com mesinhas e cadeiras no pavimento médio, e um salão para festas e dança no deck inferior, quase abaixo do nível do rio – ou do lago, whatever. Faz dois passeios diferentes – um rumo ao Norte, às ilhas do Delta do Rio Jacuí, e um rumo ao Sul, à praia de Ipanema, os clubes de vela, quase até a Lagoa dos Patos, “dos sonhos, dos barcos, mar de água doce e paixão”, como diz a canção do Kledir e do à época poeta Fogaça, hoje prefeito reeleito da cidade. Sai do porto bem diante da Praça da Alfândega, perto de grandes prédios históricos, a duas quadras do Mercado Público. O endereço exato é Avenida Mauá, 1050 – Portão Central do Porto.
Tem um problema: o passeio das 18 horas só sai se houver um quórum mínimo de 20 pessoas. No primeiro dia em que fomos até lá na esperança de fazer o passeio, não deu nem metade do quórum. A garota do atendimento, simpaticíssima – e bonitinha –, nos avisou que o passeio das 15 horas sai todos os dias, sem depender de quórum. Fizemos o passeio, o do Delta do Jacuí, no dia seguinte; tinha cerca de dez pessoas, apenas, pouco mais que o número de tripulantes. Um único grupo reunia cinco pessoas: uma gauchinha, simpática, bonitinha e meio sonsa, o namorado alemão, os pais e o irmão dele. Lá pelas tantas a gauchinha veio falar com a gente, pedindo explicações geográficas: o sogro a enchia de perguntas e ela não sabia responder; nunca tinha feito o passeio de barco antes, e não sabia onde era o Norte, onde era o Sul. Demos explicações para ela, e depois para o próprio sogro, simpático alemãozão de Berlim com um inglês quase tão precário quanto o meu atual. (A gente encontraria o grupo outro dia, eles saindo e nós chegando para o passeio de ônibus de turismo.)
Há muitas ilhas, e lindas, verdíssimas, de grandes, belas árvores, no Delta do Jacuí, que nos fez lembrar bastante o Delta do Paranazão, antes de virar o Rio de La Plata, “mi Rio de la Plata lindo e sucio”, ao Norte de Buenos Aires. Em algumas delas há as tais mansões de ricaços, milionários, coisa cinematográfica. Uma das ilhas é a das Flores, que é, acho, aquela em que existe, ou existia, um lixão filmado nos anos 80 num curta-metragem que ficaria famoso, Ilha das Flores, do porto-alegrense Jorge Furtado, que depois faria os ótimos O Homem que Copiava e Meu Tio Matou um Cara. Lembro que Fernanda viu o documentário na Nova Horizonte e se apaixonou por ele. No passeio, não dá para ver o lixão.
Os outros barcos que fazem passeio pelo Delta do Jacuí e pelo Guaíba são dois irmãos gêmeos, Noiva do Caí I e Noiva do Caí II, bem menores e bem mais humildes que o Cisne Branco. Não têm a infra-estrutura portuária do Cisne Branco, cuja empresa tem escritório naquele ponto nobre e central do porto; ficam baseados na Ilha da Pintada, do outro lado do braço do Jacuí. Na hora dos passeios, atracam ao lado do Gasômetro. Não planejamos passear em um deles – foi um acaso. No final da tarde de sábado, véspera da nossa volta para São Paulo, estávamos no Gasômetro, para ver o povo aglomerado para assistir ao pôr-do-sol no Guaíba; precisávamos de um lugar para sentar, porque eu tinha dado uma canseira danada na Mary, propondo uma caminhada a partir do caixotão do Iberê Camargo até depois do estádio do Inter – e foram alguns bons não sei quantos quilômetros
Foi aí que ouvimos um nego propagandeando, como os camelôs de antigamente: “Passeio no Guaíba para ver o pôr-do-sol no rio – só 5 pilas”. O preço normal é 10 reais, contra 15 do Cisne Branco, mas crise é crise, e neguinho estava ali tentando atrair freguês a laço. Grande liquidação para ver o pôr-de-sol no Guaíba. Topei na hora, claro; os caras atrasaram a saída, em busca de mais 5 pilas dali, 5 pilas daqui, mas o fato é que o barco saiu cheio, pouco depois de 18h30, o sol já quase no horizonte
Ao passar junto de uma das ilhas, o barco, numa ação ecologicamente incorreta mas empresarial-turisticamente compreensível, apita aquele apito altíssimo de barco, e centenas e centenas de aves saem das árvores e voam no céu vermelho-laranja sobre o Guaíba, para delírio da turistada. Gaúchos passeavam em lanchas e em jet-skis, passando diversas vezes diante do barco, num show de exibicionismo
No Cisne Branco, alto-falantes tocavam Credence, Dire Straits, Sinatra e bossa nova; no Noiva do Caí I (ou seria o II?), tocou sertanejo-brega. As pessoas eram classe média-média, ou média-baixa, e a maioria parecia ser gaúcha mesmo, do interior, enquanto os turistas do Cisne Branco são média-média para média-alta. Naquele fim de semana, Porto Alegre tinha sido invadida por uma multidão de gaúchos do interior, que foram participar, no Anfiteatro do Pôr do Sol, de uma reunião de evangélicos com música gospel e um pastor americano famoso pacas do qual jamais tínhamos ouvido falar.
Um parque imenso e um Parcão menor
Em termos assim do nível sócio-econômico de seus passageiros, os Noivas do Caí estão para o Cisne Branco exatamente como o Parque Farroupilha, ou melhor, Redenção, está para o Parque Moinho de Ventos, ou melhor, Parcão. O Farroupilha-Redenção é maior e mais central; naquele sábado, os freqüentadores eram, na maioria, classe média-média ou média-baixa, gente mais simples. No belo, detalhado e bem escrito roteiro que tinha nos enviado, a Vivi, porto-alegrense da gema, o sobrenome Kulzcynski para comprovar, tinha dito que o Farroupilha-Redenção estava meio caidaço. Não nos pareceu caidaço; é um belíssimo parque, com árvores gigantescas, um belo lago com pedalinhos, um mini-zôo e, como os demais parques que vimos, com o europeu e absolutamente salutar costume de não botar cimento no chão – o chão é de chão mesmo. O único defeito que notamos nele foi uma certa ausência de bancos com encosto. É mantido apenas pela Prefeitura, ao contrário do Parcão, que tem empresas particulares como co-patrocinadoras, mas estava bastante limpo.
Numa das extremidades do Farroupilha-Redenção, a Avenida José Bonifácio – onde há os prédios gigantescos e bem antigos de uma escola militar por onde devem ter passado os gaúchos ditadores do golpe de 1964 –, aos sábados funciona uma imensa feira de artesanato, a Brique de Sábado. Tudo muito organizado, com barraquinhas todas iguais, colocadas no canteiro central da avenida, os expositores com crachá da Prefeitura. Várias pessoas nos disseram que a feira dos domingos, que ocupa também uma das pistas da avenida, é muito maior que a Brique de Sábado.
Então: o Farroupilha-Redenção é um belo parque. Mas o Parcão é mais granfo, mais finório, em tudo por tudo. Fica bem no meio do bairro Moinhos de Vento, no alto de um morro – Porto Alegre é uma cidade cheia de morros; Roma tem sete colinas, mas Porto Alegre, tchê, tem bem mais, parece que 27. O Parcão também é bem grande, com várias áreas para crianças, quadras para esportes, muita árvore, muito banco com encosto, na sombra e ao sol, bom pra namorar ou pra ler, um laguinho bonito com patos, garças e uma infinidade de tipos de passarinhos de diversas cores que já se habituaram com os vizinhos humanos e passeiam pertinho deles. A sem-cerimônia dos pássaros gaúchos em chegar perto da gente impressionou a Mary
Os porto-alegrenses que freqüentam o Parcão – Vivi tinha nos avisado disso, com o advérbio perfeito – fazem jogging enlouquecidamente. De fato: fazem jogging enlouquecidamente, alucinadamente, loucamente, insanamente. Centenas de neguinhos de classe média para média-alta, desde jovens até senhores e senhoras de mais de 60, 70 anos, andam e correm pra lá e pra cá como se aquilo fosse a coisa ao mesmo tempo mais prazerosa e mais obrigatória da vida. Fiquei exausto de vê-los
Como na Recoleta, mas sem o cemitério
Moinhos de Vento é algo assim como os Jardins ou Higienópolis em São Paulo, ou, mais apropriadamente, como a Recoleta de Buenos Aires – sem o cemitério. Belíssimos prédios residenciais, ainda belos casarões, bom comércio, um shopping chicaço, com vários cinemas, uma Saraiva Megastore (onde comprei dois CDs) e de onde Mary, uma anticonsumista praticante, quis sair o mais rápido possível, xingando que shopping é igual em tudo quanto é lugar do mundo e que shopping mata as cidades.
Pertinho do shopping, e pertinho do Parcão, fica a Rua Padre Chagas, que Vivi tinha nos indicado, e que uma outra jornalista porto-alegrense, num site que Mary descobriu no iPhone, descreve como a mais charmosa da cidade
É charmosa mesmo, a Padre Chagas. Pequena, umas três quadras – assim uma espécie de Lorena cravada na Recoleta. Um monte de cafés e sorveterias simpaticíssimos – aliás, como tem cafés e sorveterias aquela cidade; é impressionante. E todos cheios. Todos os lugares naquela cidade ficam cheios. É, de fato, a cidade da classe média.
Os cafés, sorveterias e bares da Padre Chagas estavam começando a se encher naquela hora, sexta começo da noite. Numa das extremidades dela fica uma rua com uma seqüência de restaurantes, vários deles bem finórios. Meio esnobemente finórios demais. Acabamos optando por um Irish pub, o Mulligan, na própria Padre Chagas, num casarão antigo, lotadinho na parte da frente, quintal ao ar livre atrás vazio quando chegamos (depois foi enchendo com a fauna das sextas-feiras, claro), e dezenas de opções de chope e cerveja, quase tantas quanto o Frangó. Tomamos uma Guiness, uma tcheca e muitos chopes Eisenbah, com um filé com molho preto excelente.
Nessa sexta à noite, depois do Mulligan, demos mais uma passeada por Moinhos de Vento; tomamos um chope num bar-livraria simpaticíssimo (com banheiro unissex, um dos três que vi em Porto Alegre), e, como eu ainda estava com sede de chope, fomos parar no Baskaria, um restaurante debruçado sobre o Parcão, que tem esse nome porque pertence a descendente de bascos; lá dentro há um belo mapa do País Basco. No Baskaria veio um carpaccio não muito bom – a única comida que provamos na cidade abaixo do nível do ótimo.
Come-se muito, e bem, e barato
Claro, comida boa e farta é uma das tradições de que os gaúchos mais se orgulham – e em Porto Alegre de fato come-se muito, muito bem, e barato.
Vivi tinha indicado uns 35 lugares para a gente comer, e claro que não deu para ir a todos, mas fomos a vários. Um italiano chiquetérrimo e não absurdamente caro, Peppo Ristorante, em Moinhos de Vento – este não foi indicação da Vivi; gostei do folhetinho deles colocado no hall do hotel. O mais tradicional churrasco para turistas, no sistema espeto corrido, o Galpão Crioulo, no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, ou melhor, Harmonia, com show ao vivo de gauchada gauchesca, dezenas de gaúchos de bombacha e gaúchas fantasiadas de gaúchas, som altíssimo – em vez de ficarmos putos, entramos no clima e deu tudo certo
Mas o melhor lugar de todos, onde fomos na primeira e de novo na última noite, foi o Barranco. Vivi tinha dito que a esse lugar vão os próprios gaúchos, nada de turistas, e é bem verdade. Fica um pouco longe do Centro, no bairro Petrópolis, a quase 6 km da Praça da Matriz (Moinhos de Vento fica a 3 km), fora de qualquer circuito turístico. Ocupa uma área imensa, no meio de árvores gigantescas. Chope excelente, bem tirado, e uma lingüiça caseira que meu Deus do céu e também da terra, o que que é aquilo. Barato: o mesmo preço que pagamos pra comer em lugares sem qualquer charme e comida nada especial em Matinhos, no Paraná. E lotado, lotado de gente da terra. Na primeira noite, a de segunda, dia 16, tinha uma área grande, das várias áreas ao ar livre, reservada para uma festa particular, com famílias inteiras, avós, mães, titias, crianças, bebês de colo – depois vimos que era de uma confraria de produtores de vinho. Segundo o motorista de táxi que nos levou até aquela lonjura da Avenida Protásio Alves (o tal garotão que acha que todas as cidades são iguais, a não ser pela comida) nos disse que tanto o Inter quanto o Grêmio costumam jantar lá, em ocasiões festivas
Inter e Grêmio. Inter e Grêmio é tema obrigatório em Porto Alegre, claro. Como nas Minas Gerais do Atlético e Cruzeiro, Inter e Grêmio são um duopólio; os outros times são só sparrings, só para preencher tabela e o Gauchão não ser uma infinita seqüência de Gre-Nals. Muito mais do que entre chimangos e maragatos, do que entre brizolistas e antibrizolistas, do que iedistas (4,5% da população, segundo o último Datafolha, incluindo um dos motoristas de táxi que conhecemos) e anti-iedistas (os outros 95,5%), do que petistas e antipetistas, os gaúchos se dividem entre colorados e gremistas. Nas ruas, dezenas e dezenas de neguinhos andam com camisas do Inter, e outras dezenas e dezenas com camisas do Grêmio. Em todos os lugares vendem-se camisas do Inter e do Grêmio, em geral lado a lado: no Shopping da Rua da Praia há duas lojinhas idênticas, seguramente pertencentes aos mesmos donos, uma do lado da outro, uma com tudo possível e imaginável do Inter, a outra com o mesmo tudo possível e imaginável do Grêmio.
Os estádios de Inter e Grêmio ficam não muito distantes um do outro, ambos na região Sul da cidade, ambos com a inscrição Campeão do Mundo bem visível. O guia do ônibus turístico presta muita atenção e muito cuidado para dedicar o mesmo número de palavras e segundos a falar de cada um dos dois times, com o bem fundamentado temor de provocar uma revolta entre gaúchos de um ou do outro lado.
Quando comentei com o Sandro a coisa da crise de identidade do Guaíba, se é rio ou se é lago, ele notou que o problema é de fato muito sério: afinal, o estádio do Inter (Porcão, segundo os gremistas) é o Beira-Rio. Diz ele, no seu texto sempre brilhante:
“Descobri há pouco tempo que o Rio Guaíba é um lago, e isso é muito grave. Pois o estádio do Inter deveria mudar o nome para Beira-Lago? Isso provocaria um terremoto cultural inenarrável. Seria mais ou menos como mudar o nome da Bombonera para, sei lá, Floreira, ou Lixeira.”
Tropeça-se em cultura
Este texto já está grande demais, está ficando do tamanho do que fiz sobre Paris (e daí? tem que ficar mesmo, tchê, diriam os gaúchos), e, como dizia o Celso Ming para o Mitre, ao chegar à linha de número 400 sem ter ainda alcançado o que descreveu como “o fulcro da questão”, ainda não falei nada de cultura – e é impressionante a coisa da cultura em Porto Alegre
Os belo-horizontinos, os curitibanos que me perdoem, mas em Porto Alegre se tropeça em cultura. É impressionante. Como a Mary bem notou: as pessoas comuns na rua falam de cultura, de livros, de filmes, de música.
Na Praça da Alfândega – belíssima –, vimos um dia uma apresentação de um conjunto de música andina, à espera de algum trocado. Umas dez pessoas, em trajes típicos, cantando e tocando com a ajuda de um playback que tocava outros instrumentos. Tinha visto um assim na Union Square, em San Francisco, e comprado um disco deles, e por isso fui lá ver se os andinos porto-alegrenses tinham disco; claro que tinham, 20 reais. Ouvi mais tarde o disco em casa. É uma família de equatorianos. Bah, um som bom – uma coisa andina mas com um toque de world, com as flautinhas e violões típicos mas também com sintetizador, um toque meio techno, meio de índio norte-americano forte com brinco de ouro na orelha
No dia seguinte, em outro ponto da Praça da Alfândega, tinha um rapaz solitário, guitarra elétrica e gaita pendurada no pescoço à la Woody Guthrie (os mais jovens diriam à la Bob Dylan, ou à la Neil Young; os mais jovens são assim, acham que o mundo começou no dia em que eles nasceram). Cantava, e bem cantado e bem tocado, “Wild Horses”, dos Stones. Paramos pra ver, mas paramos atrás dele, para não distraí-lo, e também para tentar observar as reações. Quase nenhuma reação: tinha uma garotinha meio punk parada diante dele, pele muito clara, cabelo vermelho fogo vivo, cara de mesmerizada, e só; o resto das pessoas passava direto, sem parar nem um segundo para ouvir. O cara aí atacou de “Like a Rolling Stone” – cantou a letra inteirinha, certinha. Sugeri à Mary que deixasse uma moeda para ele, ela andou até lá, botou a moeda. Ao terminar “Like a Rolling Stone” ele se virou para trás, olhou para nós e perguntou: Algum pedido? Respondi que não, que ele ficasse na dele, e o bicho foi de “The Boxer”.
Um dia, saindo do Centro Nova Olaria, na Cidade Baixa, onde ficam as salas do Cine Guion e uma beleza de loja de discos e livros, e há diversos cafés e bares que fazem lembrar demais Buenos Aires, entramos num táxi e no rádio Dylan estava cantando “Jokerman”. Não ouço rádio, mas imagino que não haja uma emissora de São Paulo que toque “Jokerman”, e então me peguei dizendo “uau, Bob Dylan” – e o motorista do táxi, um garoto, disse, tranquilamente: “É, essa música o Caetano gravou”. Juro de pé junto que nenhum motorista de táxi do meu bairro – e eu conheço dezenas deles – sabe que Caetano gravou “Jokerman
Aproveito o gancho para matar o assunto táxi: seguramente não há cidade alguma no Brasil em que o táxi é mais barato e farto. Um taxista me falou em 3 mil táxis, mas parecem 30 mil – estão em todos os lugares, a qualquer hora. As corridas em geral não passam de 12 reais; fizemos várias de menos de 7. Do aeroporto até o Centro foram 25 reais – a metade do que em São Paulo se gasta de Perdizes até Congonhas, para não falar de Cumbica. E os motoristas – não vimos exceção – são falantes, comunicativos, o que é normal, mas bem humorados e não reclamam da vida e de que a praça está ruim, o que é digno de entrar no Livro Guinness dos Recordes.
Não contaram a eles que CD está acabando
De volta à música, Porto Alegre tem outro recorde: o número de lojas de discos. As lojas de disco estão sumindo, com as compras e os downloads via internet, os tocadores de MP3, as livrarias megastore e a imbecilidade das gravadoras, mas ainda não disseram isso para os porto-alegrenses. Numa galeria bem no Centrinho, que liga a Rua da Praia à Sete de Setembro (ou seria à Siqueira Campos? bem, oficialmente o endereço é Rua dos Andradas, 1444), tem uma loja de disco junto da outra. Numa delas, onde quem atende é um hippão envelhecido e com cara de quem já fumou todos, há uma imensa variedade de CDs importados – estão lá todos os da Joan Baez na fase Vanguard, a primeira, dos anos 60 – e também dos novos LPs bilionários, perto de 200 reais a peça, de não sei quantas gramas de peso. Vi vários do Dylan, em nova edição para a tribo dos neo-elepeístas pós-CD como o Pedro da Lu Fernandes.
Chegamos a essa galeria por mero acaso, durante um dos vários passeios pelo Centrinho. Depois vi, em um desses guias que os hotéis distribuem (um chamado Programa Rio Grande do Sul, 3 reais o exemplar), um anunciozinho e um textinho picareta falando da “Chaves, a galeria do CD”: tem a Via Imports CDs, “especializada em CDs importados”, a Sala dos Clássicos, “uma das melhores do gênero no país”, e a Sinthonia Musycal, “cartas, tarôs, astrologia e reike com hora marcada, artigos esotéricos, CDs e DVDs”.
(Que diabo será reike?)
A loja do Cine Guion do Centro Nova Olaria tem uma variedade absurda de CDs de trilhas sonoras; tem de tudo um pouco, mas a especialidade é trilha sonora; achei e comprei um Ennio Morricone ao vivo que nunca tinha visto e, outra surpresa, a trilha do Vestida para Matar, do Pino Donaggio. É uma edição americana meio antiga; dentro da capinha-encarte bem vagabundinha, de 4 folhas, uma delas ocupada por uma foto de impressão ruim não da Angie Dickinson, e sim da Nancy Allen, há a informação – coisa de que eu jamais tinha ouvido falar – de que se trata de um CD de “edição limitada, não disponível em todas as lojas”: “Varèse Sarabande está se propondo a lançar um clube de CDs para atender a pedidos feitos via correio, devotado a fazer discos de edição limitada de grandes trilhas sonoras. Esses CDs só estarão disponíveis para membros do clube. Se você estiver interessado em receber informações sobre o Varèse Sarabande CD Club, escreva para
Vivendo e aprendendo
Na Avenida Borges de Medeiros, embaixo dos arcos – lugar muito bonito, e diferente de tudo o que conheço de cidade grande –, e mesmo depois do viaduto dos arcos, o Otávio Rocha, há diversas lojinhas, sebos de CDs e LPs, LPs dos antigões, tradicionais, pré-CD. Numa delas, que o senhor que atendia dizia ser a melhor loja de Porto Alegre com música para a nossa geração, achei uma caixinha chique da CBS, série Masterworks, o selo de música erudita da gravadora, da Ópera dos Três Vinténs, da dupla Brecht-Weill; a gravação é de 1958, com Lotte Lenya, a senhora Kurt Weill em pessoa, no papel de Jenny, e a edição é holandesa, de 1982; o encarte tem 96 páginas, traz notas imensas e todas as letras e é trilingue – alemão, inglês, francês. Pertenceu a alguém que estudou as letras, fez diversas anotações no encarte. Paguei 10 reais pela preciosidade
Livrarias, livraria-bar, livraria-café, feira de livros
E Porto Alegre tem tantas livrarias quanto tem lojas de discos. Todo o Centro é coalhado de livrarias, e, como já citei, em Moinhos de Vento há até livraria-bar, onde vimos duas duplas de mulheres conversando sobre literatura e trabalhos de pós-graduação. Aos sábados, há uma feira de livros na Rua Riachuelo; pelo que deu para entender, não é propriamente uma feira fisicamente falando; cada uma das diversas livrarias da região promove, aos sábados, ofertas de alguns de seus livros, e a isso chamam de feira.
(Mais adiante pela Borges de Medeiros rumo ao Sul, há um ajuntamento de lojas de antiguidades, e aos sábados uma feira de antiguidades – esta uma feira mesmo, no meio da rua.)
Entre os prédios históricos, antigos, do Centro, há o da Livraria do Globo. A Livraria do Globo foi também a importantíssima Editora Globo, que, até os anos 60, lançou toda a obra dos gaúchos Érico Veríssimo e Mário Quintana e um punhado de clássicos importantes, se não me engano Tolstói, Dostoiévski, Thomas Hardy e Theodore Dreiser entre eles, mais um bando de autores franceses. A parte editora da empresa – se não estou redondamente enganado – foi comprada no final dos anos 80 ou começo dos 90 pelas Organizações Globo, que juntou a Globo gaúcha com o que era antiga Rio Gráfica Editora e passou a chamar de Editora Globo, a que publica as revistas Marie Claire e Época, hoje o carro-chefe da empresa.
A Livraria do Globo está lá no prédio do início do século XX onde, parece, também funcionou a antiga Editora Globo; atualmente, no térreo fica a área de papelaria, material para escritório, uma grande Kalunga; no segundo piso fica material escolar, e, no terceiro, finalmente, a livraria em si – com um grande e belíssimo café, adornado com pôsteres de reproduções de fotos da empresa ao longo dos anos, dos autores publicados pela velha Globo e dos seus proprietários. Espalhados pelo salão de pé direito alto, há peças das velhas, velhíssimas impressoras, caixas de tipos, prensas, máquinas de escrever da era pré-Remington e pré-Olivetti – uma maravilha. No sábado por volta do meio-dia, apenas uma das cerca de 15 belas mesas estava ocupada, por um bando de velhinhos – intelectuais, escritores, jornalistas, muito provavelmente. Não tive coragem de me dirigir a eles para fazer perguntas.
Sem um novo Puerto Madero, por favor
Montes de lojas de disco, montes de livraria – e montes de centros culturais. Montes e montes de centros culturais. Ao ver os muitos armazéns vazios do porto (o movimento pesado de navios foi levado mais para o Norte, para um ponto mais afastado do centrinho histórico), Mary imaginou um plano de revitalização do porto, à la o que fizeram em Barcelona e Buenos Aires e há décadas dizem que vão fazer no Rio, mas briguei ferozmente contra a idéia, com o argumento de que é melhor deixar tudo do jeito que está: se inventarem revitalização do porto, é capaz de esvaziar a cidade em si e seus muitos centros culturais. Eles têm boa freqüência hoje, estão sempre com gente – melhor deixar como está. Mary acabou concordando, e fica combinado assim: não haverá uma novo Puerto Madero em Porto Alegre.
Há um centro cultural no Gasômetro, com café e cinema, e, entre outros, cursos de informática. Quando estivemos lá, tinha também uma exposição de fotos de Porto Alegre em várias épocas, bancada pelo jornal Correio do Povo, que, aparentemente, o poderio do grupo RBS ainda não conseguiu sufocar. A rigor, nem precisava de exposições, porque o prédio do Gasômetro em si, entre o início do porto, de um lado, e, do outro, o início dos parques que prosseguirão acompanhando o Guaíba rumo ao Sul, já é uma belíssima atração. A vista que se tem do Guaíba e das ilhas do delta na grande varanda do terceiro andar do prédio onde funcionou a antiga usina termoelétrica da cidade é de babar.
No centrinho do centrinho, junto da Praça da Alfândega e suas belas árvores, estão três prédios imponentes, maravilhosos, construídos na década de 20, ou por aí, onde hoje funcionam o Margs, o Memorial do Rio Grande do Sul e o Santander Cultural.
O prédio onde está o Margs, o museu de arte do Estado, foi construído para ser a alfândega, se não me engano. Tem um bistrô francês dando para fora, para a praça, bem simpático, e, lá dentro, um café, e um bom acervo, com Di, Portinari, um
monte de gaúchos, é claro, alguns bem bons, e diversos europeus.
O prédio que hoje é o Santander Cultural foi construído para ser um banco, não sei exatamente qual – talvez o antigo Banco da Província do Rio Grande do Sul. Hoje tem salas de cinema, mas estava sem exposição nos salões principais, e por isso as recepcionistas não nos deixaram entrar neles. Foi o único lugar em que vimos pessoas antipáticas – as recepcionistas em vez de recepcionar afastam os eventuais visitantes. Como se não houvesse outros centros culturais para ver naquela cidade. A principal atração do belo predião, assim, acaba sendo um café construído dentro do lugar que era o antigo cofre central do banco. Comemos lá uma bobagem qualquer, servida por um garçom veado, afetado, metido a besta.
O Memorial do Rio Grande Sul funciona no prédio que foi construído para ser o Correio central de Porto Alegre, nos moldes do prédio do Correio no Anhangabaú com São João. A construção é uma beleza, como os demais vizinhos, e havia lá uma exposição de grandes painéis contando os principais fatos da história gaúcha. A exposição é muito boa, os painéis são bonitos e bem montados – o duro é tentar entender a história gaúcha, com tanta revolução, tantos farroupilhas, tantos positivistas, maragatos, chimangos, caudilhos, invasão disso, invasão daquilo. Lutam muito, aqueles povos do Sul.
Ali perto tem o Mercado Público Central – um belo centro cultural-gastronômico, maravilha de mercadão, assim uma mistura do Mercado paulista da Rua da Cantareira com o Mercado Modelo da Cidade Baixa em Salvador. Entre as mil bancas de comida de todos os tipos e as dezenas de bares e restaurantes, alguns antiqüíssimos, com cheiro de mate e peixe fresco, segundo tinha avisado a Vivi, há um grande sebo de revistas e livros e a sensacional Banca 40, que também nos tinha sido indicada por nossa amiga gaúcha. A Banca 40 serve ali, há 82 anos, sorvetes de todos os tipos; Mary e eu dividimos uma Bomba Royal – acho que é esse o nome de uma gigantesca salada de fruta com sorvete de chocolate, morango e nata batida. Quando chegamos, havia uma única mesa desocupada, e para pagar, na saída, tem fila.
Entre o prédio do Mercado e o porto há a estação inicial do antigo trem de subúrbio, que vai rumo ao Norte, até… ih, sei lá até onde, algo no Vale dos Sinos – seria Novo Hamburgo? Hoje é chamado de metrô, é coisa ainda do governo federal, uma estatal chamada Trensurb. Andamos nele até a quarta estação, para experimentar; estações bem limpas, bem cuidadas. O fascinante, e louco, é que, nessa estação central, a primeira delas, não há uma única placa, um único aviso de que aquelas escadas para debaixo da terra levarão a um trem, ou a um metrô. Ou você sabe que ali é a Estação da Sé deles, ou você não sabe, e pronto. Quem mandou não ser porto-alegrense?
As jóias da coroa
Já tô cansado deste texto, mas ainda falta falar das jóias da coroa na área cultural, o Theatro São Pedro e o antigo hotel Majestic, hoje Centro de Cultura Mário Quintana. Então vamos lá.
O Theatro São Pedro é o Municipal deles, só que mais velho: tem 150 anos de história e uma pré-história que remonta à década de 1820. Foi aí que um grupo de ricaços encaminhou um pedido ao presidente da então Província de Rio Grande de São Pedro para que um terreno no Centro da cidade fosse cedido para a construção de um grande teatro. Vimos a reprodução da carta dos tais ricaços – dez pessoas, acho, que não apenas pediram um terreno como doaram uma grande quantidade de mil-réis para o início da construção do teatro. Ele foi inaugurado (ou começou a ser construído? um dos dois) em 1833. Está lá, bonitão, na Praça da Matriz, como já falei 37 laudas atrás. Na década de 70 e começo da de 80, foi inteiramente restaurado, de cima abaixo. Atualmente, há obras no entorno do teatro, para transformar o conjunto num multipalco que eles prometem ser “o maior complexo cultural da América Latina”. Eles são assim, os gaúchos; não deixam barato.
Um anfiteatro, com uma concha acústica, já estava praticamente pronto, dando para a rua de trás do teatro, exatamente a Riachuelo, onde fica nosso hotel; nosso quarto dava direto para as obras.
No segundo piso do teatro, em cima do hall de entrada, dando para as árvores da Praça da Matriz, com uma bela varanda, há um bom, amplo café; ao fundo, um piano de cauda.
O interior do teatro é belíssimo, extraordinário, com vários andares de camarotes, todas as poltronas de veludo vermelho vivo. Parece (pelo que sei de ver fotos) um Scalla de Milão em miniatura. E num piso inferior tem uma exposição de fotos e painéis com textos contando a história do teatro. A uma mesa na entrada do salão de exposição estava sentada uma jovem gaúcha bonita – mais uma gaúcha bonita –, que se apresentou para nós como professora de História, à disposição para nos dar algum esclarecimento que se fizesse necessário. Dei uma reparada na professora: danada de bonita, uma cara sapeca, safada, uns 26 aninhos, toda, absolutamente toda vestida de preto, maquiagem preta nos olhos, e, sobre a mesa, o livro que estava lendo: Drácula, de Bram Stoker. Dark e safada.
O antigo Hotel Majestic deve ter sido – estou entrando no espírito gaúcho – um dos lugares mais grã-finos da América Latina, das Américas, do planeta, da galáxia. São dois prédios (na Rua da Praia, é claro) iguais, lindos, majestosos, cor de rosa!, com uma galeria no meio e passarelas ligando um ao outro em vários dos sete andares, e, no topo, duas abóbodas cor de rosa!, numa das quais, a mais próxima do porto e do rio, funciona um gostoso bar. Avista-se ainda o rio, mas, infelizmente, entre o Hotel Majestic e o porto permitiram a construção, lá pelas décadas de 50 ou 60, de horrendos prédios modernosos que tiram parte do que seria talvez a vista mais deslumbrante da cidade. Mary, como se estivesse jogando Sim City, ficou implodindo os monstrengos.
Mário Quintana, o Carlos Drummond de Andrade deles, viveu tempos no hotel de salões amplos, pé direito alto, portas imensas, mármore no chão. E então agora ali é o Centro de Cultura do poeta maior da terra. Tem oficina disso e daquilo, teatro, biblioteca, o escambau. No térreo, abrindo para a galeria situada entre os dois prédios, há três salas de cinema e um bando de bares e restaurantes.
Estávamos voltando do Gasômetro, uma noite, em direção ao hotel, quando tropeçamos, ali na galeria do Centro de Cultura Mário Quintana, com a abertura do 5º Festival de Verão do RS de Cinema Internacional. Já tínhamos ouvido falar do festival, e até ido umas duas vezes à bilheteria do cinema do Santander Cultural perguntar pelo folheto com a programação, cuja impressão e distribuição tinha atrasado. (Tem horas em que se tem a sensação de que Porto Alegre, afinal de contas, fica no Brasil.) Mas não sabíamos que a abertura seria naquele dia, e ali. Pois era.
Montaram na galeria um cinema ao ar livre, como se faz nesses projetos tipo Cinemagia: baita tela, caixas de som, cadeirinhas de armar enfileiradinhas. Pensamos em ficar por ali para ver não exatamente o filme de abertura, mas um pouco do clima; na metade da galeria, quando terminavam as cadeirinhas armadas, havia mesas e cadeiras de um dos restaurantes do lugar, um tal Café dos Cataventos. Sentamos ali para beber, comer, ver o clima – e até mesmo dar uma olhadinha sem compromisso no filme, já que a tela estava lá adiante de nós.
O filme de abertura era o Cantoras do Rádio, um bom documentário sobre as próprias, misturando depoimentos e apresentações delas hoje. O som não estava lá essas coisas, então me enfiei mais para perto da tela para ouvir um pouco dos discursos de apresentação; falou um garoto jovem, que imaginei ser o diretor do filme, e que dedicou, sensata e um tanto populistamente, a sessão inaugural ao porto-alegrense Lamartine Babo. Na verdade, o filme foi dirigido por Gil Baroni e Marcos Avellar; não sei qual dos dois estava lá e falou; falha de repórter ruim que sempre fui. Estavam presentes, e falaram, duas das cantoras mostradas no filme – Carmélia Alves, com seus 80 e tantos lépidos anos, e Ellen de Lima, igualmente lépida e fagueira.
A língua da potência estrangeira, questão complexa
Numa mesa próxima à nossa, atrás de nós, em relação à tela, havia dois senhores; quando a gente se sentou, eu até perguntei se eles não se incomodariam, e um deles disse com segurança que não atrapalharíamos nada. Enquanto o filme não começava, reparamos que um dos dois era alguém importante na área de cultura. Não dava para não reparar, porque havia praticamente uma fila de beija-mão junto da mesa dele. Depois conversaríamos com ele, e ele, uma figura simpática como praticamente todas as pessoas com quem falamos durante a viagem a Porto Alegre, em pouco tempo já nos tratava com se fôssemos velhos conhecidos.
Chama-se Pedro Costa. Um tipo interessantíssimo. Uns 65, talvez 70 anos, elegante, bem cuidado (embora beba muita cerveja e fume muito), desse tipo de gente rica e culta. Foi diretor de uma empresa que chegou a ter 50 cinemas no Rio Grande do Sul e Santa Catarina; uma empresa dele hoje, a Panda Filmes, é uma das responsáveis pela realização daquele festival que estava sendo inaugurado.
O amigo que estava com ele, Clóvis, é um técnico da área de som, que tem no currículo uma passagem pela Rádio Eldorado. Brinquei que fomos colegas da mesma empresa. Lá pelas tantas, esse Clóvis chamou o dono do restaurante para vir conhecer os jornalistas de São Paulo – embora tivéssemos insistido no fato de que somos mineiros radicados em São Paulo, até porque, dissemos, nós mineiros e eles gaúchos temos muita coisa em comum, como os fatos de que exportamos gente para todo lugar do país, temos uma grande projeção nas diversas áreas de cultura e dos dois Estados sai, modéstia às favas, um bando de gente que sabe escrever.
Foi uma gostosa conversa, até tardão; fechamos o bar. Na saída, já de madrugadão, o Pedro Costa nos acompanhou até perto do hotel; não que houvesse perigo de assalto ou coisa parecida – apenas por gentileza. E também porque ele mora por ali, no Centro da cidade. Ao contrário do que acontece em tanto lugar, a classe média de Porto Alegre não abandonou seu Centro.
Uma beleza de cidade, Porto Alegre. Mary e eu concluímos que, se em vez de belo-horizontinos, fôssemos porto-alegrenses, muito provavelmente não teríamos saído de nossa cidade.
Antes da viagem, eu tinha brincado com os amigos que talvez fosse ter dificuldades com a língua do povo daquele país estrangeiro. Sandro achou que eu deveria ter adotado a política protecionista do ‘brazilian buy’ e passar as férias no Brasil mesmo: “Para que engordar a receita turística de uma potência estrangeira? Já que não há alternativa, pelo menos coma-lhes a picanha.” Já o Valdir disse que eu não deveria ter problemas, pois o gauchês é simples: “linguiça é salsichão, PM é brigadeano, menino é guri ou piá, farol é sinaleira, estádio de futebol é cancha, lanchonete é lancheria. Carne moída, boi ralado. Helicóptero, avião de rosca.”
Bem, os preços cobrados na potência estrangeira não são absurdos, e a picanha é maravilhosa. Já a questão da linguagem é complexa, bem complexa. (E os exemplos dados pelo Valdir foram contestados por uma gaúcha legítima, Dininha Torres Luize, conforme se vê no belo comentário que vai aí abaixo.) No aeroporto, pouco antes de embarcar de volta para São Paulo, comprei o Dicionário de Porto-Alegrês, publicado pela gaúcha e porto-alegrense L&PM, atualmente na 14ª edição, revista e ampliada. O autor, Luís Augusto Fischer, vai logo explicando que existe o gauchês e existe o porto-alegrês – são coisas distintas.
Bah, tchê, e tu queres que a gente entenda aquele povo?
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